quinta-feira, 18 de julho de 2013

"Ulisses", de James Joyce

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Em Espanha, tende a relativizar-se a importância do escritor irlandês e até se converteu num monstruoso lugar-comum vangloriar-se de não ter lido Ulysses e, ainda por cima, dizer que é um livro incompreensível e aborrecido. (in E. Vila-Matas, Dublinesca)

Achas minhas palavras obscuras. Escuridade está em nossas almas, não achas? (in J. Joyce, Ulisses)
Descobrir a pólvora. Utilizamos esta expressão quando queremos frisar que uma qualquer descoberta é, afinal, uma não descoberta (por se tratar de uma coisa perfeitamente conhecida ou óbvia). Ainda assim, vou deixar escrito (“- Verba volant, scripta manent”) que “Ulisses”, de James Joyce, foi uma das grandes descobertas literárias da minha vida - não que me fosse desconhecido esse livro, de resto, tão célebre, mas só agora o li. Célebre porquê? Pelas piores razões: por ser um livro sem história, extremamente difícil, intragável ou talvez mesmo impossível de ler, que alguns acusam de intelectual em excesso, pretensioso, fraudulento… Ou, enfim, maçador, desagradável, detestável (mas até a má publicidade pode servir positivamente aquilo que publicita – neste caso, gerar curiosidade, interesse).
Ora eu gostei de “Ulisses”. Gostei? Mais do que isso: adorei (“- Gostos não se discutem”;  “- Muito pelo contrário, meu caro, senhor, muito pelo contrário…”;  “- Afinal o que importa não é a literatura, nem a crítica de arte, nem a câmara escura”; “- Bem sei, bem sei… Não será mais importante conhecer o porquê de se gostar daquilo de que se gosta?”; etc., etc.). Caso raro: ao chegar às suas últimas páginas já pensava em releitura (nota para mim mesmo: ler uma tradução alternativa – mas acerca de traduções se fala mais abaixo). Consegui entender (assim o julgo) porque é considerado uma obra-prima da literatura (porque de facto é uma obra-prima); mas também entendi porque tantos não o conseguem compreender, e até o rejeitam apresentando mil e uma razões (João César Monteiro reagindo às críticas feitas ao seu filme, "Branca de Neve”, durante a sua estreia: “-Queriam novela?”).
Ler esta obra é um desafio. A proclamada exigência do livro estimulou-me a tentar vencer o obstáculo (qual Ulisses? – i.e., o livro proporciona ao leitor desempenhar, por umas centenas de páginas, o papel de herói). É inegavelmente um livro exigente que, para além da sua linguagem cheia de trocadilhos, termos aglutinados e neologismos (ex: contransmagnificandjudeibumbatancialidade), conta com um capítulo (o terceiro, ainda que na minha edição não haja qualquer separação entre capítulos) que pode servir – pela sua subjetividade e abstração, pela deambulação no interior dos pensamentos de Stephen Dedalus – como um desincentivo à continuação (e quem desiste entretanto não chega a conhecer essa tão interessante figura que é Leopold Bloom, o nosso herói-Ulisses). Não esmorecer: o livro reserva-nos imensas surpresas (e algum humor) nas páginas subsequentes.
Uma infinidade de referências (históricas, geográficas, literárias) caracteriza “Ulisses”. Tal riqueza constitui uma das dificuldades do livro: é impossível (a não ser que se lesse uma edição crítica – mas até que ponto é que o academismo de tal edição não obstaculizaria o prazer da leitura?) seguir todas as referências presentes nas suas páginas; mesmo quem decifra muitas dessas referências, dificilmente decifrará todas (isso equivaleria a reproduzir o que se passou no interior da cabeça de James Joyce, enquanto a obra era concebida). Será necessário entender tudo? Bem, julgo que não; julgo mesmo que a intenção do autor era impossibilitar essa pretensão de totalidade (só Joyce, repito, possuiria todas as chaves – Xaves?), criando assim uma obra-mais-que-todas-as-outras múltipla (pela multiplicidade de compreensões – e incompreensões - possíveis).
Outro aspeto que pode atrapalhar o leitor é a diversidade expressiva: cada capítulo é estilisticamente diferente (há, por exemplo, um capítulo escrito como se fosse uma peça de teatro, de coloração onírica, surrealista, talvez até psicótica; outro capítulo é construído pela alternância entre perguntas e respostas, como os antigos manuais de civilidade). Mas parte da riqueza e extrema originalidade desta obra não assentará nesta diversidade (mesmo que esta possa ter algo de fanfarronice ou blague)?
A tradução que segui, de António Houaiss, é considerada “clássica”. Porém, na minha perspetiva, a sua leitura pelos leitores portugueses pode acarretar um manancial acrescido de dificuldades – dou como exemplo a existência de uma série de termos e expressões que, no Português de Portugal, são desconhecidas ou têm um sentido diferente. Sendo sem dúvida uma obra muito árdua de traduzir (Joyce utiliza frequentemente trocadilhos e jogos de palavras, quase impossíveis de fazer funcionar noutra língua que não a original), Houaiss tomou as suas opções sem as explicar (talvez para não carregar o livro com notas de rodapé), o que nem sempre joga a favor do leitor (mantido assim às escuras). Futuramente, até para poder comparar, conto reler o livro na tradução de João Palma-Ferreira (que eu saiba a única existente em português europeu).
Quanto à história, podemos sintetizá-la numa frase: trata das peripécias vividas por Leopold Bloom (a par de uma imensidade de outros personagens) no dia 16 de Junho de 1904 (note-se que o livro do autor irlandês é tão paradigmático, que nesse país se instituiu um feriado em sua homenagem – o Bloomsday, comemorado no citado dia), desde que sai de casa pela manhã até ao seu regresso. Claro que o livro é muito, mas mesmo muito, mais do que isto. Joyce conseguiu condensar em menos de vinte e quatro horas todo um mundo.
Uma obra-prima. Um livro ímpar, de uma originalidade única. Apenas um livro escrito para os críticos, como o acusam alguns, e não para os leitores comuns? (Mas o que raio são os leitores comuns? Ou querem fazer-me crer que os leitores comuns equivalem a pessoas com uma inultrapassável modorra intelectual, incapazes de experimentar coisas diferentes ou de ser surpreendidos?). Antes sim um livro escrito para todos nós, humanos, seres mais ou menos profundos e quase totalmente insondáveis, diferentes, falsamente “campeões em tudo” (cft. “Nunca conheci quem tivesse levado porrada”) ou mesmo frágeis. Uma odisseia que (nunca com outro livro tal me acontecera) me fez pesquisar para ver mais longe – não tanto para entender ou dissecar a obra, mas para medir até que ponto é que as minhas impressões tinham fundamento. Um livro que me ajuda a explicar a mim mesmo a razão de gostar tanto de ler.

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