segunda-feira, 31 de março de 2014

"Um Embuste Perfeito", de Italo Svevo

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O romance que publicara havia quarenta anos poder-se-ia considerar morte se neste mundo soubessem igualmente morrer as coisas que nunca chegaram a estar vivas. (in Um Embuste Perfeito)
Por mais que leia, várias vezes concluo que pouco conheço; existem sempre livros e autores (muitos deles não apenas excelentes, como também particularmente apropriados ao meu gosto pessoal) que me escapam, que desconheço. Há que agradecer, em muitas situações, ao acaso, que nos coloca à frente certas obras, certos autores, certos mundo (o acaso pode manifestar-se sob a forma de uma sugestão de um amigo ou até de um desconhecido; de uma citação feita por outro autor no livro que nos encontramos a ler; de um texto que encontramos na blogosfera enquanto fazíamos uma pesquisa; ou mesmo de um título que lemos numa lombada enquanto passeamos pelas estantes de uma qualquer biblioteca ou livraria, e que desperta em nós um estranho interesse...). Se não fosse ter iniciado, há já uns bons anos atrás, uma conversa sobre livros com um colega de trabalho, talvez nunca chegasse a Thomas Bernhard; se não tivesse lido os livros deste escritor, talvez não descobrisse Musil e O Homem sem Qualidades, que me encontro a ler presentemente...
Este pequeno livro de Italo Svevo, autor que conhecia de nome mas com a indiferença de quem não tem sobre ele qualquer referência concreta, foi uma pequena grande surpresa. Um Perfeito Embuste é uma história simples mas muito interessante, contada com grande finura, bastante elegância na linguagem e inteligência nas metáforas (nomeadamente nas algo ingénuas fábulas com passarinhos, passatempo do nosso protagonista), e um toque humorístico refinado (julgo que a belíssima tradução de Vasco Gato contribui muito para o prazer da leitura). O humanismo desta curta narrativa é, também, evidente, uma vez que trata de ilusão, engano, deceção...
Mario Samigli é um sexagenário que, tendo escrito e publicado um romance quando tinha vinte anos (romance esse que não vingou, apesar de o seu autor continuar a crer na sua bondade e ainda acalentar a esperança do seu reconhecimento), se vê enredado no embuste de um caixeiro-viajante das suas relações; assim, este - movido por um certo azedume face aos seus ares de literato de Mario - convence-o da existência de um editor austríaco interessado em traduzir e publicar-lhe a obra em alemão. Esta perspetiva, como não podia deixar de ser, vai trazer ansiedade e inquietação à vida (até aí cinzenta e desinteressante, ainda que limpa e satisfeita) de Mario...
Ao ler esta novela, não consegui deixar de pensar que Mario Samigli, com a sua obra única (apesar de continuar a escrever para si mesmo as tais fábulas), bem podia figurar no recentemente lido Bartleby & Companhia, de Enrique Vila-Matas. Por outro lado, também me veio à ideia A Capital, de Eça de Queiroz, que, embora de contornos muito díspares, também fala de ilusão, engano e deceção.
Estou certo que este não será o meu primeiro e último livro de Italo Svevo. Depois de procurar algumas informações sobre a sua vida e obras, tenho a intenção de arranjar e ler A Consciência de Zeno e eventualmente Senilidade - vamos esperar que sejam leituras para breve.

sábado, 29 de março de 2014

"O Bom Inverno", de João Tordo

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O Bom Inverno é o primeiro romance que leio do português João Tordo. Tendo partido para a leitura sem grandes referências (expetativas e/ou preconceitos), a leitura deste livro acabou por me agradar. Ainda que não se trate de nenhuma obra fundamental da literatura nacional (não conto regressar a ela no futuro), deu-me a conhecer um autor que escreve bem, de forma fluída, e que se preocupa sobretudo em nos contar uma história (quando não o faz, nos momentos em que esboça reflexões de caráter mais abstrato - digamos assim -, julgo que se perde um pouco em jogos de palavras mais ou menos vazias ou lugares comuns... o que, de resto, não menoriza a história).
O protagonista e narrador de O Bom Inverno é um escritor medíocre em decadência (literária, sentimental, pessoal), convidado a ir a Budapeste para participar num congresso de escritores. Aí conhece Vincenzo, também ele escritor, que o convence a empreender uma viagem até Itália com o fito de conhecer Dom Metzger, um obscuro (ainda que muito relevante) produtor cinematográfico com uma exótica paixão por balões... Percorrido mais de um terço das páginas, que até aí nos foram relatando o percurso do protagonista-narrador até chegar a Sabaudia (ou seja, a casa do produtor, onde se encontravam então diversas personalidades do mundo das artes), o livro conhece uma transformação: Dom Metzger aparece assassinado e, havendo um personagem (o artista catalão Bosco e grande amigo do defunto) obcecado com a ideia de fazer justiça pelas próprias mãos, há uma passagem para o registo do suspense... Bosco, munido de uma arma e não permitindo que nenhum dos presentes saia da casa (rodeada por um vasto bosque e sem rede de telemóvel - isolada, por isso, do resto do mundo), exige que se encontre o culpado, para que ele possa aplicar a justiça. Presos e aterrorizados, as relações entre os habitantes de Sabaudia vão-se deteriorando, e novas mortes vão ocorrer...
A história funciona, uma vez que consegue prender o leitor; apesar de algumas pontas soltas (não tanto a nível factual mas sobretudo - a meu ver - a nível das atitudes de alguns personagens), o autor não encerra mal a história... Em conclusão, posso dizer que provavelmente regressarei ao autor.

sexta-feira, 21 de março de 2014

"A Peste Escarlate" de Jack London

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Neste planeta, o homem domesticou os animais úteis e destruiu os nocivos. Desbravou a terra, desembaraçou-a da vegetação selvática. Depois, um dia, desaparece, e a onda da vida primitiva reflui sobre ele, varrendo a obra humana.

Num abrir e fechar de olhos, dez mil anos de cultura e de civilização se desfizeram como a espuma. (in A Peste Escarlate)
De Jack London posso dizer que marcou a minha juventude enquanto leitor; a sua escrita escorreita e o caráter aventureiro das suas narrativas contribuíram para que, nesse período, lesse alguns dos seus livros mais revelantes. Cheguei agora, ao fim de vários anos, a este A Peste Escarlate (publicado em 1912), história de quase ficção científica que descreve uma epidemia, extremamente mortífera e contagiosa, surgida em 2013 que se propagou com grande rapidez e praticamente dizimou a humanidade e a civilização... (Ao ler a sinopse na contracapa, antes mesmo de iniciar a leitura, não pude deixar de me lembrar dos não muito longínquos alarmes de pandemia que povoaram os nossos noticiários.)
London coloca na voz de um velho professor universitário, de 87 anos, o relato aos seus netos desse flagelo que atingiu o mundo sessenta anos antes e da sua improvável sobrevivência. Este personagem descreve o caos vivido nas cidades, a paralisia nos transportes e nos abastecimentos, o eclodir de uma onda de pilhagens e violência, a quebra das redes de solidariedade, a fuga para o campo, enfim, a disseminação da peste, o colapsar da sociedade... No ano de 2073, em que decorre a ação, apesar dos vestígios da anterior civilização, os homens vivem em bandos de características primitivas (vivem da caça e da pastorícia, vestem-se de peles, perderam o domínio de grande parte das tecnologias...); a Natureza, entretanto, conquistara terreno, «varrendo a obra humana», a linguagem empobrecera... O velho, ao encerrar o seu relato, diz que, de certo modo, a humanidade está condenada a reorganizar-se civilizacionalmente, até que uma nova onda de aniquilação atue...
Um livro que, ainda que não sendo uma obra fundamental (mesmo dentro da obra do autor), se lê com agrado.

quinta-feira, 20 de março de 2014

"Frei Luís de Sousa", de Almeida Garrett

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«Eu devia aceitar por mercê das tuas misericórdias que chamasses aquele anjo para junto dos teus, antes que o mundo, esse mundo infame e sem comiseração lhe cuspisse na cara com a desgraça do seu nascimento.» (in Frei Luís de Sousa)
O regresso a outra obra estudada nos bancos da escola: acabo de reler o drama Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, uma das peças mais importantes do reportório teatral português. Além desta, estudei ainda Viagens na Minha Terra e, no âmbito da poesia, Folhas Caídas - ou seja, percorri talvez as três obras mais importantes do autor, sendo que, a meu ver, têm méritos suficientes para colocarem Garrett num lugar de algum destaque na história da literatura portuguesa.
A história, em si, é simples: tendo dado por morto na batalha de Alcácer Quibir o seu marido D. João de Portugal, D. Madalena de Vilhena casou com D. Manuel de Sousa Coutinho (que no desfecho da narrativa se torna Frei Luís de Sousa); deste casamento resultou o nascimento de uma filha, D. Maria de Noronha. A desgraça vem com o conhecimento de que D. João era vivo - a desonra vem manchar, desta forma, a família de D. Madalena e D. Manuel... Se os presságios são numerosos ao longo dos dois primeiros atos da peça, no terceiro e último ato pesadas consequências caem sobre os personagens (note-se que nesta narrativa não há propriamente "maus" - todos, de uma forma ou de outra, procuram comportar-se honradamente)... O fim é pautado por um grande dramatismo (talvez algo exagerado à luz da sensibilidade contemporânea).
Na construção da sua obra, Garrett baseou-se numa história real (ainda que fazendo algumas adaptações para conseguir um maior alcance dramático), ocorrida em pleno período filipino; mas ter-se-á igualmente inspirado num drama que lhe tocava diretamente: a situação de ilegitimidade da sua filha Maria Adelaide...
Talvez reserve para breve a releitura de Viagens na Minha Terra... (De facto, encaro estas leituras como um regresso às origens).

terça-feira, 18 de março de 2014

"Cartas de Inglaterra", Eça de Queiroz

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Eça de Queiroz é um autor incontornável da literatura em língua portuguesa; a qualidade da sua escrita é tal que mesmo obras menos importantes, eventualmente como estas Cartas de Inglaterra, acabam por ter interesse. Este livro reúne um conjunto de "cartas" originalmente publicadas num jornal português, durante o período em que Eça exerceu as funções de cônsul em Inglaterra.
Ao longo das suas páginas, Eça de Queiroz trata, com a finura intelectual e o humor cheio de ironia que lhe são próprios, variadíssimos assuntos: a sociedade inglesa e os seus costumes, o imperialismo britânico e europeu, o antissemitismo alemão, o modo como Portugal era visto pelos britânicos, o Inverno em Londres,  o percurso de Benjamin Disraeli (figura que, além de escritor de romances - caracterizados como "salsadas" apesar do idealismo e requinte (do "chique", talvez dissesse Dâmaso Salcede) -, chegou a primeiro-ministro), a infalibilidade (ainda assim falível!) do Times, entre outros temas.
A sociedade britânica é pintada com as cores da civilização (nos seus aspetos positivos mas também, como se verá, nos negativos). Eça não pode deixar de mostrar admiração por uma nação onde se publicam tantos livros; a leitura (mesmo que recaindo sobretudo nos romances da moda ou em livros de viagem às mais exóticas paragens) era um fenómeno de massas muito louvável. Se em Portugal não existia literatura infanto-juvenil (antes se davam a ler aos mais novos «mazorros sensaborões», contribuindo para transformar as crianças em idiotas), em Inglaterra abundavam as edições de qualidade, educativas, apelativas, apropriadas às várias idades.
Por outro lado, o autor aponta a sobranceria como um dos defeitos de caráter dos ingleses: estes, na sua ótica, consideravam ter os valores e costumes mais elevados; quando viajavam, viam nos outros selvagens... Eça também não omite a existência de pobres na sociedade britânica (os operários que alimentavam a indústria), que o egoísmo da burguesia e da aristocracia esquecia em todas os períodos do ano... exceto no Natal...
No que concerne ao imperialismo, Eça refere-se aos apetites imperialistas das várias potências europeias como «instintos de pilhagem, de gatunice, de pirataria, que alberga sempre a alma dum povo civilizado»; a Inglaterra, como uma das principais potências europeias, é vista de forma muito negativa no domínio da política externa... Este final de século XIX, recorde-se, corresponde à "era dos impérios" (na expressão de Eric Hobsbawm): nela os europeus vão procurar ocupar territórios em África, territórios que lhes servissem de fonte de matérias-primas e mercados e onde pudessem expandir a sua cultura e afirmar o seu poder.
Eça de Queiroz alude à guerra travada pelos ingleses no Afeganistão, segundo ele um território demasiado vasto para ser controlado (lá as vitórias acabavam por ser invariavelmente provisórias). Fala também do processo de ocupação britânica do Egito, apresentada pelos políticos dessa nação (cinicamente) como "pacificação": o autor condena a intervenção militar nesse país, motivada por se terem tentado implementar reformas que chocavam com determinados privilégios dos britânicos, tais como a isenção de impostos ou acesso preferencial aos bem remunerados empregos públicos; critica igualmente o desprezo dos europeus que viviam em Alexandria pelos locais...
Em duas cartas, descreve-se o clima de rebelião vivida na Irlanda, país onde vigorava um «regime semi-feudal da propriedade» em que os lordes (invariavelmente ausentes) exigiam elevadas rendas aos camponeses pobres (sem beneficiaram as terras, quase sempre fracas para a agricultura) e atuavam com violência contra quem as não conseguisse pagar; Eça não hesita em apelidar a Irlanda como "país da miséria", e os irlandeses como "raça oprimida" vivendo em "servidão agrária" - e, logo, em injustiça; acusa ainda a Inglaterra de, para não perturbar os interesses de um milhar de ricos proprietários, condenar insensivelmente milhões à fome... O ódio aos "conquistadores" protestantes era, à época, bastante pronunciado, ao ponto de ganharem força várias associações com ambições independentistas e outras defensoras da luta armada contra os opressores. Para Eça, o clima de revolta justificava-se por uma sensação de desespero vivida pelos irlandeses...
O crescimento do antissemitismo na Alemanha é igualmente objeto do interesse queirosiano. O autor confessa o seu espanto em ver tal intolerância num país de elevada cultura, mas também em sentir na Inglaterra a existência de um certo desconforto face à ascensão (nomeadamente económica) dos judeus. Tenta analisar os motivos que explicam o antissemitismo, não conseguindo, porém, fugir de certas ideias feitas e preconceitos de sentido negativo...
Enfim, uma panóplia diversificada de assuntos, na prosa muito própria de Eça de Queiroz.

sábado, 15 de março de 2014

"Sátiras Sociais", de Gil Vicente

Ainda na senda de Gil Vicente, acabo de reler um conjunto de seis obras de cariz satírico, reunidas num mesmo volume: Auto da Índia, Quem tem farelos?, Farsa de Inês Pereira, O Juiz da Beira, Farsa dos Almocreves e Romagem dos Agravados. Mais uma vez, tal como escrevi para Auto da Feira, senti bastante prazer na revisitação destes autos e farsas - os "tipos" vicentinos continuam, à luz de alguma (indispensável) contextualização histórica, a respirar frescura... Claro está que gostei mais de umas (impossível não destacar o Auto da Índia - com as infidelidades da Ama - e a Farsa de Inês Pereira) do que de outras, mas em todas estas obras vicentinas está presente o tipo de humor, de mordacidade, mas também de acutilante crítica social que caracterizam o autor ("verdades entre gracejos", como se lhe terá referido o humanista André de Resende).
Os nobres (lembremos que os que viviam na corte assistiam às representações vicentinas, e que alguns personagens pretendiam representar pessoas reais, facilmente reconhecíveis pelo público...) são especialmente satirizados na Farsa dos Almocreves e na Romagem dos Agravados, como soberbos, interesseiros e, de certo modo, ociosos e inúteis. A primeira destas obras retrata um Fidalgo que, não tendo rendas para isso, quer viver acima das suas capacidades (tal como na crítica vicentina aos escudeiros, Gil Vicente brinca com esta tendência para viver das aparências... - ponto que, arriscaria dizer, persiste hoje em dia na mente e no agir de tantos), contando com vários "oficiais" (ourives, capelão) no seu séquito; porém, estes servidores vivem pobremente por não serem pagos pelos seus serviços... e ficam igualmente por pagar as fazendas trazidas pelo almocreve. A pontuar isto, a queixa do Fidalgo: que os seus servidores são uns ladrões e se fazem pagar caro (considerando que servi-lo é já uma honra)! Um dos fidalgos que figura em Romagem dos Agravados queixa-se, por sua vez, da sua falta de rendimentos e do facto do rei não o erigir à dignidade de conde, ainda que das Berlengas!
Figuras especialmente visadas pela sátira vicentina são os escudeiros (presentes em Quem tem farelos?, Farsa de Inês Pereira e O Juiz da Beira), figuras algo anacrónicas à época. São retratados como ociosos, fanfarrões, sem nada de seu (condenando à miséria os seus moços), apesar dos seus ares altivos e ambições sociais (de virem a ascender a cavaleiros). Brás da Mata, com o qual se casa Inês Pereira, por exemplo, é pintado como, além de pobre e vivendo de aparências (sabe falar galante e tocar um instrumento), um ser mentiroso (diz-se cortesão), sem escrúpulos, ciumento, tirânico («Se eu disser: "Isto é um novelo", / havei-lo de confirmar. / E mais, quando eu vier / de fora, haveis de tremer; / e coisa que vós digais / não vos há-de valer mais / que aquilo que eu quiser.»; condena mesmo a mulher a uma estrita clausura na sua ausência, não lhe permitindo quaisquer divertimentos), além de covarde (é morto por um pastor mouro em terras africanas)...
A crítica ao clero não está ausente destas páginas (pense-se que este tipo de crítica terá mesmo valido ao autor alguma perseguição nos seus últimos anos de vida - cft. críticas às indulgências no Auto da Feira, questão que à época dividia o mundo cristão): os clérigos aparecem-nos caracterizados como incultos, viciosos, abusivos, hipócritas... Na Romagem dos Agravados Frei Paço pretende representar os clérigos palacianos, pintado como mal sabendo rezar e vivendo sobretudo das aparências, mexeriqueiro, traidor e corrupto; Frei Narciso, por sua vez, está agravado por não ver correspondida a sua ambição em ser bispo... Já na Farsa de Inês Pereira se diz que um clérigo se atirou a uma amiga desta...
Os camponeses são vistos como ingénuos e ignorantes, mas, no fundo, seres de bom coração. Pêro Marques, desde logo, o pretendente recusado por Inês Pereira (mas depois, após a má experiência com o escudeiro Brás da Mata, aceite - "Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube", lembre-se, é o mote da farsa), ilustra bem esta caracterização; isto apesar da falta de sensatez das suas sentenças como juiz (chega a citar um burro, objeto em discussão num caso de partilhas!)... Já o camponês que entra na Romagem dos Agravados se queixa de Deus, por não lhe dar tempo propício à agricultura, por lhe matar os seus - blasfémias perdoáveis pela sua simplicidade; mais do que isso, queixa-se (e nisto talvez se sinta alguma solidariedade de Gil Vicente com os camponeses) das duras condições da sua vida...
Além destes "tipos", Gil Vicente inclui também nas suas obras judeus (como casamenteiros algo perversos na Farsa de Inês Pereira, mas caracterizados menos negativamente na figura do sapateiro queixoso de O Juiz da Beira), regateiras e pastoras (queixosas de várias situações amorosas), freiras (apenas se queixam da sua clausura - não há comparação com a crítica, bastante mais incisiva, feita aos clérigos...), entre outros.
Gil Vicente em mais de uma situação se mostra favorável à conformação de cada um com a sua origem social; a ambição de ascensão (dos escudeiros, dos vilãos, etc.) é, assim, objeto de crítica. O autor, por exemplo, debruça-se sobre o excesso de pessoas ligadas à Corte e sobre a ambição de muitos em pertencerem a esse círculo («Cedo não haverá vilãos: / Todos d'El-Rei, todos d'El-Rei!» - Farsa dos Almocreves) - pois se, em função da "prosperidade" advinda dos Descobrimentos, aumentou o número de funcionários ligados às instituições de poder central, também se verificou (e Gil Vicente denuncia-o) algum abandono (ou não desenvolvimento) das atividades agrícola e artesanal, contribuindo para se depender da importação de quase tudo! A administração é, também ela, tocada pela crítica vicentina: «Eles são os presidentes / e os mesmos requerentes» (Romagem dos Agravados)...
Em breve, conto terminar este meu périplo pela obra vicentina revisitando os três autos das barcas...

sexta-feira, 14 de março de 2014

"O Barco Aberto", de Stephen Crane

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Até há pouco menos de um ano, desconhecia Stephen Crane. Foi através de Herberto Hélder (de um poema mudado para português presente no livro As magias. Alguns exemplos) que cheguei a Crane; como apreciei o poema lido, fui atrás de mais - e cheguei à coletânea O Sapo no Horizonte. Poemas de Stephen Crane, que mais me impressionou.
Agora tive a oportunidade de ler alguma da sua prosa, na forma de dois contos: "O Barco Aberto", ficção baseada numa experiência de naufrágio vivida pelo autor; e "Três Soldados Miraculosos", uma história passada durante a Guerra Civil Americana. O primeiro dos contos é bastante impressivo, naturalista, na descrição da situação vivida pelos quatro náufragos (seus receios e esperanças) que, num pequeno bote, enfrentam o mar revolto na tentativa de chegaram a terra. O segundo conto acaba por também ser interessante, pelos dilemas (morais, de certo modo) enfrentados pelos personagens...
Em suma, um curto livro mas de interesse.

domingo, 9 de março de 2014

"Bartleby & Companhia", de Enrique Vila-Matas

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A glória ou o mérito de certos homens consiste em escrever bem; o de outros consiste em não escrever. (Jean de la Bruyère, cit. in Bartleby & Companhia).

Bartleby & Companhia é um livro que aprecio de uma forma muito particular. Sabendo não ser nenhuma obra fundamental da literatura, é, ainda assim, um livro que não me importaria de ter escrito. Feita esta estranha declaração, pouco haverá para dizer, mas ainda assim procurarei explicar as razões que me levam a gostar tanto deste livro, que agora, mais uma vez, reli.
Há uns anos atrás, tive a oportunidade de descobrir Vila-Matas através da leitura de cinco ou seis livros seus. De um modo geral, achei interessantes as obras então lidas, o estilo de escrita, as narrativas; porém, Bartleby & Companhia desde logo se destacou para mim (mais tarde também achei muito interessante Suicídios Exemplares). Desde logo porque é um romance de tonalidade ensaística, concebido de forma matrióskico (perdoem-me o neologismo): um escritor (Vila-Matas) escreve sobre um escritor (de uma obra só, agora em busca de um caminho de regressa à escrita) que escreve sobre escritores que sofrem do "síndrome de Bartleby"... (Será o neologismo assim tão desadequado?)
E quem é Bartleby? Trata-se do memorável personagem de um conto de Herman Melville, que, sendo escrevente num escritório (onde, aliás, vive), aparenta não ter vida para além da sua mesa de trabalho e que, quando o encarregam com algo ou lhe perguntam qualquer coisa sobre si, responde invariavelmente «Preferia não o fazer». O tal síndrome é, pois, detetável nos escritores que escreveram uma obra ou duas e depois deixaram de escrever, caindo num longo silêncio; nos que depois de terem escrito toda uma obra ficaram paralisados; ou nos que, talvez por terem uma consciência literária muito apurada, nunca chegaram a escrever (!)...
Este é, pois, um livro que, como já se percebeu, fala de escritores (muitos) da "Literatura do Não", como lhe chama o nosso rastreador de bartlebys no seu diário ou «caderno de notas de rodapé sobre um texto invisível»; as suas páginas incluem várias citações, justificativas para a não-escrita, curiosidades e excentricidades. Pessoalmente, a leitura deste livro deu-me a conhecer alguns escritores e, mais do que isso, fez-me tentar conhecer-lhes as obras (Robert Walser, por exemplo, o primeiro escritor a ser referido, foi um dos autores a que cheguei através de Bartleby & Companhia).
Um livro, portanto, que considero absolutamente delicioso, na medida em que consegue ser simultaneamente culto e divertido. De certo modo, coloco-o a par de outro livro que acho igualmente delicioso - O Papagaio de Flaubert, de Julian Barnes - e que também parte em busca da literatura...