domingo, 30 de agosto de 2015

"As Flores do Mal", de Charles Baudelaire

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Há já uns bons anos que queria ler est'As Flores do Mal, de Baudelaire, na tradução de Fernando Pinto do Amaral; mas, por uma situação ou outra, fugiu-me sempre. Cheguei a considerar ler outra tradução a que tive acesso, mas a verdade é que emperrei nas primeiras páginas. Pude agora, finalmente, ler As Flores do Mal na tradução pretendida.
E, de facto, pude confirmar os méritos desta obra e do seu autor (bem como do tradutor, que também assina uma belíssima introdução) - tão sobejamente conhecidas para quem se interessa por poesia, e que os tornam marcantes na história da literatura.
Fiquei encantado com a presença do sórdido ou mesmo do abjeto nos poemas baudelairianos - o "escarro", o "estupro", a "podridão", a "imundície", a "ignomínia", etc., são termos algo frequentes -, o que revela um olhar desencantado (realista?) sobre a realidade. Por outro lado, esta obra revela-nos o cosmopolitismo parisiense (visível, por exemplo mas não apenas, nos "Quadros Parisienses"), o relativismo moral e de certos valores (a beleza que esconde ou ignora a sua própria corrupção, ), os veículos de evasão da realidade (o álcool e o haxixe, mas também a sensualidade, o prazer), o Tédio (ou mal estar existencial ou spleen), o papel do poeta (desajustado, rejeitado, incompreendido), a degradação do mundo (no poema "Um cadáver", o poeta descreve um corpo em decomposição - pútrido, asqueroso, infecto - e constata que esse será o fim do corpo da amada).

sábado, 22 de agosto de 2015

"D. Afonso III", de Leontina Ventura

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Na sequência da leitura de D. Sancho II. Tragédia, de Hermenegildo Fernandes, urgia (pela modo como os percursos destes dois reis estão ligados) a leitura da biografia de (seu irmão) D. Afonso III, desta vez da autoria de Leontina Ventura (e co-autoria, um vez que é responsável por um capítulo de dimensão considerável, de António Resende de Oliveira) - obra, desde já o declaro, de leitura muito mais escorreita que a anterior, com uma linguagem mais arejada e uma estrutura francamente amigável.
O livro divide-se, assim, em quatro partes: na primeira, capítulo que considerei muito bem montado (por fazer justiça às várias sensibilidade e interpretações), a autora faz uma revisão às representações historiográficas do biografado ao longo dos séculos (desde a literatura senhorial até à historiografia contemporânea) - de restaurador (da paz e boa governança), D. Afonso III foi apodado de usurpador e ambicioso (por exemplo, com Alexandre Herculano), e, mais recentemente, como fundador do Estado Moderno (segundo José Mattoso). As segunda e terceira parte aparecem encadeadas e conjugam a sequência cronológica (a segunda parte é dedicada ao período anterior à chegada ao poder de Afonso, enquanto que a terceira se refere aos anos em que foi rei) com a abordagem temática (a centralização do poder, seus órgãos e modos de atuação; os conflitos com a Igreja; etc.).
Por contraste com o de D. Sancho II, o reinado de D. Sancho III caracteriza-se por uma avultada documentação proveniente da chancelaria régia, que a autora utiliza como via para nomeadamente aceder aos aspetos administrativos e legislativos. Se o período em que Afonso reinou é rico em informação (não apenas, claro está, emanada da sua própria chancelaria; e apesar da inexistência de quaisquer crónica coeva dedicada a esse monarca), o conhecimento relativo à sua infância e juventude é bastante lacunar (não estando Afonso destinado a reinar, terá saído cedo do reino, passado pela corte francesa, acabando por casar com Matilde de Boulogne e adquirir o título condal).
O conhecimento do seu percurso ganhar contornos mais nítidos a partir do momento em que, dado o clima de instabilidade vivido em Portugal, o Papa depõe Sancho II e exorta à obediência ao conde de Bolonha; ultrapassada a guerra civil, D. Sancho II é efetivamente deposto (acabando por sair do país e morrendo no exílio toledano em 1248) e D. Afonso ascende a rei (todo este tema, também tratado por Hermenegildo Fernandes, é, a meu ver, tratado de forma bem menos barroca por Leontina Ventura). Com o reinado do novo monarca, finda-se a conquista do Algarve (obrigando a, durante vinte anos, a gerir diplomaticamente a questão da soberania do território com o rei de Castela), e dá-se início à reorganização administrativa do reino (já toquei a questão da organização da chancelaria régia, mas posso acrescentar a preocupação com o povoamento, com a articulação económica do território, com o cadastro das propriedades e o levantamento de usurpações, com a cobrança dos réditos régios, com a prática da justiça, etc.).
Na última parte, exploram-se outros aspetos característicos do reinado de D. Afonso III: a constituição da sua corte (os cargos, principais figuras, etc.); a família régia (de novo se aborda a questão do abandono e repúdio de Matilde de Boulogne e a situação de bigamia - o rei acabaria por casar, "por razões de Estado", com D. Beatriz de Castela, de quem teve significativa descendência), os relacionamentos extraconjugais (e resultantes filhos bastardos) e laços de proximidade; e, por fim, o ambiente cultural e as distrações na corte afonsina (num capítulo de bastante interesse, António Resende de Oliveira faz uma revisão da produção literária cortesã e elabora pertinentes considerações históricas a partir, nomeadamente, do cancioneiro galaico-português).
Para encerrar a obra, a autora reproduz um fonte entretanto descoberta (aparentemente inédita): uma descrição coeva de Afonso III por um franciscano da corte castelhana.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

"Sem Coração", de Miguel Miranda

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Lido em dois dias, este Sem Coração, de Miguel Miranda, é, de certo modo, uma homenagem ao Porto disfarçada de romance policial. O roubo do coração de D. Pedro IV (que, como é sabido, repousa na Igreja da Lapa), e a ocorrência de duas enigmáticas mortes são pretexto para um investigação de Mário França, detetive que se considera o "melhor do mundo" (por oposição ao algo inepto inspetor Constantino Consciência).
Em primeiro plano, o leitor é confrontado com o Porto: o autor não apenas situa a ação do seu romance em vários locais paradigmáticos da cidade (além da já referida Igreja da Lapa, Miguel Miranda refere a zona da Ribeira e nomeadamente o icónico Muro dos Bacalhoeiros e a Praça do Cubo, a Ponte D. Luís, a Torre dos Clérigos, a Serra do Pilar, a Cadeia da Relação, a Livraria Lello, além de cafés, hotéis e outros lugares), como remete para a sua história (neste caso o Cerco do Porto de 1832-33 e a doação feita por D. Pedro IV do seu coração à cidade - história que inteligente e curiosamente o autor coloca na boca dos estudiosos da cidade, aqui transformados em personagens: Germano Silva, Hélder Pacheco e Joel Cleto). Em fundo, vão aparecendo algumas referências culturais muito diversificadas: Sherlock Holmes (um dos modelos, seguramente, de Mário França - pela promessa último personagem de grandes dotes de raciocinador... ainda que talvez não totalmente confirmados nesta história em particular), Lucky Luke, Dostoievski, Tolstoi, Jim Morrison, etc.
Mário França, como já acima se disse, revela uma elevada confiança nos seus dotes investigativos (roçando, para fins humorísticos, algum exagero), na sua capacidade de lidar (manipular, conduzir) os outros, nos seus dotes de sedutor irresistível com as mulheres... Talvez incongruente com o tamanho do seu ego é o facto de não ser propriamente muito bem sucedido (tendo, por exemplo, rendas em atraso). Nas suas investigações é auxiliados por uma trupe de aleijados e desajustados: um tasqueiro (Quim Comandos), um ourives (Dedos), um cauteleiro (Cotos), um pirata informático (Kit Cobras), um artista do Cirque do Soleil (Bilinho Muletas), um trolha (Tony, the Painter) e um contorcionista/carteirista (Elastic Man).
Pelos nomes dos "olhos e ouvidos" (isto é, dos elementos da equipa) de Mário França é possível ver uma das características que perpassa por todo o romance: o kitsch. Associado a esta tonalidade estética, como não podia deixar de ser, temos o humor: Miguel Miranda vai pautando a sua narrativa de vários elementos humorísticos, seja pelo exagero, pelo patético ou ridículo, etc. De um modo geral, julgo que Sem Coração é um livro divertido, ligeiro, sem grandes pretensões de estrita verosimilhança. A escrita de Miguel Miranda é escorreita e descontraída, ainda que talvez em certos pontos pudesse ser um pouco mais trabalhada - penso que há, em certas passagem (ao nível da escrita mas o mesmo se passa ao nível da história em si), qualquer coisa de apressado ou desleixado que não parece resultar da melhor forma (pelo menos para este leitor).
A narrativa policial é, de certo modo, de um tipo clássico - isto é, o investigador vai avançando no seu conhecimento do caso sem mostrar o seu jogo ao leitor; no fim, qual história de Poirot (podia dar outros exemplos), o detetive desvenda os mistérios perante uma plateia, apontando os culpados. A meu ver, o desfecho é um dos pontos mais frágeis do romance: a meu ver, não há verdadeiramente uma cadeia explicativa, nem grande complexidade (ainda que o autor jogue com as relações, cumplicidades e inimizades, dos vários personagens), mas antes um fecho simples e um pouco frouxo.
Mas longe de mim dizer que não me agradou ler este livro. A verdade é que, não sendo um livro fabuloso ou obrigatório, me propiciou umas horas agradáveis e descontraídas de leitura. Se o livro tem pontos menos conseguidos tanto a nível da escrita como a nível da história (que os tem, na minha modesta opinião), não fiquei completamente defraudado com Miguel Miranda. Em muitos pontos apreciei o seu humor (não somente os toques de kitsch, mas sobretudo o uso da ironia), os seus piscares de olho ao Porto, e alguns dos seus apartes de tipo aforístico.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

"Poesia Inglesa" (2 vols.), de Fernando Pessoa

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A leitura da poesia inglesa de Fernando Pessoa acaba por funcionar para mim como um regresso a este autor (ao fim de uma primeira imersão,  há cerca de dez anos, nas várias facetas da sua obra). Há, porém, uma grande limitação nesta minha abordagem: mais do que o inglês original (o meu domínio da língua não me permite, infelizmente, apreciar a escrita original - reputada, aliás, pelos estudiosos como algo complexa e caracterizada por um certo tom arcaizante), segui a tradução (que me pareceu francamente boa) de Luísa Freire, responsável pela edição e pelos textos que servem de posfácio aos dois volumes lidos.
É sabido que Pessoa passou parte da sua infância/juventude em Durban, na África do Sul, contactando profundamente com a cultura anglófona - o que justifica a sua ambição, num determinado momento, de ser reconhecido como um poeta de expressão inglesa. Uma das suas primeiras personalidades literárias pessoanas - ainda não exatamente de tipo heteronómico - de vulto (isto é, com uma obra mais ou menos ampla e congruente) foi Alexander Search: com esse nome, Pessoa assinou um conjunto significativo de poemas entre 1903 e 1910 (durante, portanto, a sua juventude). Após esta primeira fase poética (ainda algo imitativa e ingénua), Pessoa assina com o seu próprio nome (e chega mesmo a publicar) um corpus poético mais maduro e original (mais próximo, quer na expressão, quer nos temas, da sua poesia em português). Os volumes agora lidos apresentam a obra pessoana em inglês escrita desde 1910 ao fim da sua vida.
No primeiro volume da sua Poesia Inglesa é possível encontrar as obras que Pessoa publicou em vida, chegando a enviá-las a jornais ingleses (33 Sonnets, Epithalium, Antinous e Inscriptions), bem como The Mad Fiddler (ou O Rabequista Mágico, na tradução de Luísa Freire). Epithalium apresenta a curiosidade de ser um poema de caráter erótico, ou talvez mesmo - em algumas passagens - obsceno (na medida em que trata da perda de virgindade de uma noiva); em Antinous Pessoa trata o amor homossexual entre o imperador romano Adriano e Antínoo (tema desenvolvido de forma exemplar por Margarite Yourcenar na já clássica obra Memórias de Adriano); finalmente, The Mad Fiddler é uma coletânea de poemas de que Pessoa se orgulhava bastante (e, de facto, os mesmos estão ao nível de outros grandes poemas escritos na mesma altura, ou seja, na década de 1910's), e que pretendeu mesmo publicar em Inglaterra (ainda que não desenvolvendo grandes esforços para concretizar esse ensejo). No segundo volume, a responsável pela edição reuniu poemas avulsos, incluindo alguns inéditos.
Apesar de menos conhecida do grande público, e pese embora a eventual dificuldade de a apreciar na língua original, esta Poesia Inglesa de Pessoa tem muitos aspetos que justificam a leitura, complementando a visão que temos deste nosso autor.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

"Fernando Pessoa" (fotobiografia), de Richard Zenith

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A par de Estranho Estrangeiro. Uma biografia de Fernando Pessoa, de Robert Bréchon, acabei de ler a fotobiografia da responsabilidade do estudioso pessoano Richard Zenith; de certo modo, estas leituras complementaram-se.
Se o número de retratos do Pessoa adulto é relativamente limitado (sendo estes frequentemente reproduzidos), já as fotografias do Pessoa criança e adolescente ou do adulto em contexto familiar são menos conhecidas. Também julgo de bastante interesse a reprodução dos seus escritos - sobretudo os manuscritos ou mistos (simultaneamente datilografados e manuscritos) -, que convidam o leitor ao esforço de decifração da sua letra (muitas vezes apressada - e que permite perceber as dificuldades dos editores pessoanos em fixarem de forma definitiva alguns dos seus escritos) e ao confronto com o processo pessoano de aperfeiçoamento (é frequente os seus escritos terem imensas emendas, variantes, cortes, interrogações, etc.).

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

"Contos de Amor, Loucura e Morte", de Horacio Quiroga

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Não sendo eu um fervoroso leitor de contos, também não tenho uma especial antipatia por estas histórias curtas quando cativantes. Desta feita, após ter bebido - não sei bem onde - algumas referências positivas a este autor uruguaio, Horario Quiroga, e influenciado pelo título desta coleta, decidi-me ler estes Contos de Amor, Loucura e Morte.
O que dizer sobre este livro? Antes de mais que vi confirmada a "prometida" boa escrita de Quiroga - trata-se de uma escrita ponderada mas elegante. Porém, no que me diz respeito, julgo que lhe falta alguma intensidade. Contos há que, pelo título, chegamos diretamente ao conteúdo; bem sei (e até defendo isso em muitas situações) que a forma - isto é, a escrita em si mesma - pode justificar a beleza de um texto, mas nestes contos (em que o amor, a doença, a morte andam, na verdade, sempre presentes) não consegui vislumbrar nada de especialmente fascinante. Não fiquei, assim, particularmente impressionado - como, por exemplo, aconteceu há uns meses com os contos de Giovanni Papini.
Destaco, ainda assim, alguns contos, que me agradaram mais que os restantes: "A galinha degolada", que combina a idiotia com um certo fatalismo; "O nosso primeiro cigarro", que tem o mérito de mostrar o caráter indomável e orgulhoso de um rapaz de oito anos; e "A meningite e a sua sombra", que me fez lembrar sobremaneira (ao ponto de sentir uma espécie de déjà vu, perdoem-me o estrangeirismo) o episódio dos sonos delirantes de Amália, em Senilidade, de Italo Svevo.

domingo, 9 de agosto de 2015

"Estranho Estrangeiro. Uma biografia de Fernando Pessoa", de Robert Bréchon

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Publicada em 1996, esta é a terceira biografia escrita sobre Fernando Pessoa - posterior às de João Gaspar Simões (1950) e de Ángel Crespo (1988), e anterior à de Richard Zenith (2009 - em rigor trata-se de uma fotobiografia, que me encontro igualmente a terminar) e à autointitulada "uma quase-autobiografia" (2012 - obra que, por um lado, foi muito aclamada, mas que, por outro, foi muitíssimo criticada pelo círculo de estudiosos pessoanos). O seu autor, tendo vivido em Portugal nos anos 1960's (desempenhou os cargos de conselheiro cultural da embaixada de França e de diretor do Instituto Francês), foi um interessado e empenhado divulgador da obra pessoana.
Estranho Estrangeiro é, de um modo geral, e pesem embora alguns erros menores (o que é fácil, dado o biografado ser esquivo em muitos domínios da sua existência) e limitações (algumas das quais minoradas pela investigação entretanto feita), uma biografia equilibrada e - mesmo que o seu autor, na advertência inicial, refira não ter pretensões de objetividade (fala mesmo em "opções tendenciosas") - relativamente objetiva. Se a admiração do biógrafo pelo biografado é patente, anda-se, de qualquer forma, longe da hagiologia (achei curioso o autor confessar a sua "devoção" a Pessoa, mesmo que, como estudioso, seja desconfiado relativamente aos devotos). O autor é, a meu ver, suficientemente ponderado (em especial em questões mais melindrosas - pense-se, por exemplo, no "problema" da sexualidade pessoana), evitando ser gratuita e precipitadamente categórico; julgo que, por outro lado, fundamenta relativamente bem as suas opiniões (nomeadamente quando deduz informação biográfica, ou aspetos do caráter do biografado, da sua obra - as suas angústias, receios, obsessões, contradições, etc.).
A estrutura do texto é, por sua vez, bastante amiga do leitor, uma vez que se reparte em 35 capítulos (contando com o prelúdio e o fecho) de uma dimensão simpática; estes seguem uma sequência cronológica que vai sendo intercalada com capítulos de teor mais temático-analítico.
Em conclusão, um livro que, embora tendo sido escrito há vinte anos (e a investigação ter avançado nesse período de tempo, havendo hoje um maior conhecimento da obra mas também da figura), continua bastante atual e julgo que faz justiça à grandeza de Fernando Pessoa. Para rematar, a leitura desta biografia chamou-me a atenção - num momento em que parto para a revisitação da obra pessoana - para Fausto, texto que conheço mal e que li há já bastantes anos numa edição muito parcelar.